Paul Wood
Da BBC News, na Síria
Atualizado em 5 de julho, 2013 - 13:14 (Brasília) 16:14 GMT
Parecia exagerada demais, algo típico de propaganda de guerra. Mas a notícia de que um comandante dos rebeldes sírios teria comido o coração de um soldado inimigo sob aplausos de seus homens acabou sendo confirmada – ao menos em partes.
Abu Sakkar, o líder do Exército Livre da Síria que aparece comendo um órgão em um vídeo divulgado na internet, não tinha tanta certeza sobre os detalhes quando o entrevistei.
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"Eu realmente não me lembro", disse ele, quando perguntei se tratava-se de um coração humano, como foi dito na época, ou um fígado, ou ainda um pedaço de um pulmão, como me relatou um médico que assistiu ao vídeo. "Eu não mordi, apenas segurei para mostrar aos outros", acrescentou.
Nas imagens que rodaram o mundo, Sakkar está acima do corpo de um soldado inimigo, retalhando o cadáver.
"Parece que você está fatiando um coração de Dia dos Namorados", diz um dos rebeldes. Pouco depois Abu Sakkar pega uma mão cheia de algum material não identificado e declara: "Nós vamos comer seus corações e seus fígados, seus soldados de Bashar, o cão" – em referência ao presidente sírio Bashar al-Assad.
No momento seguinte, ele traz a mão até a boca e seus lábios se fecham ao redor daquilo que está segurando. Na época em que o vídeo foi divulgado, em maio, telefonamos para ele e Sakkar nos confirmou que havia dado uma mordida.
Agora, frente a frente, ele parece mais sóbrio – embora fique com mais raiva quando pergunto por que fez isso.
"Eu não quis fazer isso. Eu tive que", ele me conta. "Nós temos que aterrorizar o inimigo, humilhá-lo, da mesma forma que ele faz conosco. Agora, eles não vão ousar estar no mesmo lugar onde Abu Sakkar estiver", diz.
Aos 27 anos, Sakkar é um beduíno parrudo, com olhar intimidador. Sírio do distrito de Baba Amr, na cidade de Homs, ele tem a pele queimada pela exposição ao sol durante as muitas horas seguidas de combate. Ele me conta a história do seu envolvimento na revolução, até chegar à sua atual notoriedade.
Manifestações
Antes de se juntar às manifestações na Síria, no início de 2011, Sakkar trabalhava como operário em Baba Amr. Na época, ele acompanhou o momento em que uma mulher e uma criança foram mortas durante um protesto. Seu irmão foi ajudar, e ele também foi assassinado.
Meses depois, em um vídeo de junho de 2011, Abu Sakkar pode ser visto diante de uma multidão acenando com ramos de oliveira ao cumprimentar soldados que desertavam do Exército do presidente Bashar al-Assad.
Na mesma época, ele acabou pegando em armas contra o regime, tornando-se um dos primeiros membros do então recém-criado Exército Livre da Síria (ELS).
Em fevereiro de 2012, ele lutava na Brigada Farouq quando os rebeldes tentaram evitar, sem sucesso, que os homens de Assad tomassem Baba Amr.
Ao final dos combates, com a retirada do ELS, Sakkar deu início a sua própria brigada, a Omar al-Farouq.
Ao longo do caminho ele perdeu mais um irmão, muitos parentes, e muitos de seus homens. Seus pais foram presos e ele disse que a polícia ligou para ele para que pudesse ouvir o espancamento dos dois.
"Coloque-se na minha pele", ele diz. "Eles levam seu pai e sua mãe. Massacram seus irmãos, assassinam seu tio e sua tia. Tudo isso aconteceu comigo. Eles massacraram meus vizinhos".
"Canibal"
Voltando a falar sobre o homem que aparece no vídeo, Sakkar dá mais detalhes do que se passou no dia.
"Esse homem tinha vídeos no seu celular. Ele aparecia estuprando uma mãe e suas duas filhas. Ele as despiu enquanto elas imploravam que ele parasse, em nome de Deus. Finalmente ele as esfaqueou e assassinou. O que você teria feito?", ele me pergunta.
Ele diz que meses atrás seus homens tinham ordens de alimentar os inimigos capturados e repassarem a mensagem de que todos são irmãos. "Mas eles começaram a estuprar nossas mulheres, matar crianças com facas".
Abu Sakkar mostra cicatrizes de 14 diferentes ferimentos à bala em seu corpo. "Nós estamos sob ataque, já são dois anos agora. Há vídeos das shabiha (milícia do governo) que mostram coisas muito mais terríveis do que o que eu fiz. Vocês não se preocuparam. Não houve tanto alarde na mídia. Vocês não deram importância. Se vocês sofressem uma fração do que nós sofremos fariam o que eu fiz e muito mais".
Argumento internacional
"Se nós não conseguirmos ajuda, uma zona de exclusão aérea, armas pesadas, nós faremos muito pior (do que ele fez). Vocês ainda não viram nada", ele ameaça.
Mas ao tornar-se o "rebelde canibal", Sakkar acabou fornecendo um argumento aos membros da comunidade internacional que se opõem aos planos de ajudar os revolucionários.
Durante a última reunião do G8, o grupo das nações mais ricas do mundo, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, citou o ocorrido.
"Essas não são pessoas que simplesmente matam seus inimigos, elas abrem seus corpos, e comem seus intestinos diante do público e das câmeras. São essas pessoas que vocês querem ajudar com armas?", questionou.
É possível que Abu Sakkar tivesse problemas psicológicos desde sempre. Ou talvez a guerra tivesse deixado-o assim.
A guerra transforma as pessoas, e a da Síria não é diferente.
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