As brasileiras Bianca Dias Amaral e Letícia Pokorny percorreram durante horas um trajeto perigoso para entrar ilegalmente em um país de onde 2 milhões de pessoas já fugiram: a Síria.
Com alguns meses de diferença, as duas partiram da Turquia com o mesmo objetivo: chegar a dois hospitais no norte do país para ajudar civis, vítimas da guerra ou de problemas decorrentes dela, como a escassez total de serviços básicos de saúde.
Como os dois hospitais - ambos mantidos pela ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) - ficavam em áreas controladas pelos rebeldes, as duas tiveram que cruzar a fronteira ilegalmente.
"Foi muito assustador. Atravessei um descampado por umas três horas e, o tempo todo, ia ouvindo os bombardeios, sem parar. Quando cheguei em uma rodovia de terra, tive de correr por uns 500 metros, sem olhar para trás", conta Bianca, uma obstetra de 30 anos que, para o desespero de sua família, foi para Síria em sua primeira missão no MSF.
Já a fisioterapeuta Letícia, de 37 anos, havia acabado de passar alguns meses na Líbia quando foi chamada para ir para Síria, sua 11º missão para a ONG.
Com bagagens diferentes, elas contam à BBC Brasil os desafios que enfrentaram, os medos e também os momentos recompensadores.
Bianca Dias Amaral, obstetriz
BBC Brasil - Como você foi chamada para ir à Síria?
Bianca Dias Amaral - Quando o pessoal do MSF me ligou perguntando se eu queria ir para a Síria, fiquei muito surpresa, porque normalmente eles mandariam pessoas mais experientes para um local assim. Então pedi um dia para pensar. Após 12 horas, estava convicta de que não iria. Porque mesmo indo com uma ONG desse porte, há coisas contras as quais você não pode se proteger. Quando liguei para comunicar minha decisão, conversando com a coordenadora, eu aceitei, pois vi que era exatamente isso que eu queria. Embarquei no começo de abril e fiquei até o fim de junho.
BBC Brasil - Como era sua rotina lá?
Bianca - Meu trabalho envolvia justamente a área da saúde básica, algo que ficou totalmente comprometido com a guerra, já que os hospitais foram destruídos e a maioria dos profissionais fugiu. Fazia partos, pré-natal, consultas. O ritmo de trabalho era intenso, porque além do trabalho durante o dia, também corria para o hospital toda vez que uma grávida chegava para ter o bebê. Em 9 semanas, só em 3 noites não fui chamada.
BBC Brasil - Você sentia que estava em um país em guerra?
Bianca - Após um mês e meio, houve um grande ataque. Bombas caíram perto do hospital. As paredes tremiam e o barulho era ensurdecedor. Atendemos dezenas de feridos. Depois, ficamos sabendo que as tropas do governo estavam marchando em nossa direção. E não sabíamos se iam conseguir nos tirar de lá ou não. Esse foi meu pior momento. Uma hora, percebi que estava respirando muito ofegante, mas eu não estava correndo nem nada, estava sentada na minha cama, parada. Estava em pânico.
BBC Brasil - E vocês foram retirados no final? Como foi?
Bianca - Sim. Quando saí, senti um misto de alívio por deixar aquele lugar, algo bem egoísta, com uma sensação frustração, por estar abandonando as pessoas que já haviam sido abandonadas por todo mundo. Mas a situação melhorou e voltamos depois de alguns dias.
BBC Brasil - Como foi trabalhar em um país muçulmano?
Bianca - Eu usava véu e blusa cobrindo os braços, o que às vezes era complicado por causa do calor. Mas nunca sofri nenhum tipo de preconceito por ser mulher. Também me fez aprender um pouco de árabe, principalmente os termos ligados a parto, seja alguma palavra técnica até a saudação que eles fazem quando o bebê nasce. E achei curioso que, em vez do marido, é a sogra que acompanha a gestante na hora do parto.
BBC Brasil - No que essa missão te marcou?
Bianca - Fiquei muito impressionada com o comprometimento dos sírios que, apesar de tudo, decidiram ficar no país e resolveram ajudar, como a minha tradutora, que era estudante de literatura em Aleppo antes de a guerra estourar. Meu jeito de trabalhar não mudou tanto, mas, pessoalmente, sou outra. Mudou tudo. Minhas preocupações, minhas prioridades.
BBC Brasil - Pra onde você vai agora?
Bianca - Vou para o Quênia por 14 meses. E estou torcendo para minha mãe ter esquecido sobre o ataque ao shopping da capital. Mas é uma missão mais tranquila, em que serei a supervisora de saúde da mulher, com serviços como pré-natal, parto, ações relacionadas ao HIV, violência sexual.
Letícia Pokorny, fisioterapeuta
BBC Brasil - Como você foi parar na Síria?
Letícia - Eu tinha acabado uma missão de cinco meses na Líbia e já tinha dito que queria ir para Síria. De repente, me ligaram perguntando: Quer ir semana que vem? Topei na hora. Fui no final de junho, e fiquei 6 semanas.
BBC Brasil - O que sua família disse quando você contou para onde estava indo?
Letícia - Ah, essa já era minha 11ª missão, então eles já estavam acostumados. Na verdade, todos me acham meio louca, mas também me admiram. O meu trabalho acabou incentivando meu pai - que é urologista - a se inscrever no MSF e a ir a uma missão na África. Quando ele voltou, após seis semanas, disse: "Agora eu consigo conversar contigo, filha". E ele já está louco para ir de novo.
BBC Brasil - Qual era sua função lá na Síria?
Letícia - Fui escalada para montar o serviço de fisioterapia local para tratar especialmente pacientes vítimas de queimaduras. Isso porque, diante do conflito, não há combustível para vender e as pessoas começam a "destilar" no quintal de casa, para consumo próprio ou para conseguir um dinheiro extra. E, claro, há muitos acidentes. Mais de 50% dos queimados lá são vítimas desse tipo de acidente doméstico. A fisioterapia ajuda a evitar complicações após queimaduras, com impedir a fraqueza muscular e "descolar" tecidos colados (como na região das axilas).
BBC Brasil - Qual foi foi a parte mais difícil?
Letícia - Sem dúvida, trabalhar com crianças. Elas não entendem que aquele exercício tão dolorido para quem está com a pele queimada vai ser recompensador. Os pais, no começo, tampouco entendem. Imploram para a gente parar. "Por favor, pare de machucar meu filho", me pedem. Mas depois veem o quanto ajuda, e são super gratos. Algumas famílias são mais duras e conseguem aguentar ver as crianças com dor. Mas às vezes é você quem precisa ser mais dura.
BBC Brasil - Algum caso te marcou?
Letícia - Lembro de um menino de 9 anos, que sofreu queimaduras de combustível nas pernas. O caso dele não era tão grave, mas ele simplesmente não caminhava porque a família não o incentivava a andar, já que isso causaria dor e eles queriam poupá-lo. Fiquei muito chocada. Uma criança simplesmente desaprendendo a andar. Chamei a mãe da criança, expliquei, mas não adiantou. Na semana seguinte, chamei o pai e endureci a conversa, ameacei internar o menino. Funcionou. E em 15 dias, ele estava andando normalmente. Nesses casos, é preciso firmeza, tendo um cuidado em respeitar a cultura deles, claro.
BBC Brasil - E com adultos?
Letícia - Nesse hospital sírio, tratei de um homem que havia sido arremessado a 40 metros de distância após a explosão de um tanque de combustível. Ele tinha perdido a esperança. Mas depois de dias de tratamento, lembro do filho dele gritando pelo hospital: "Meu pai melhorou! Ele conseguiu sentar na cama!". Quando ele saiu do hospital foi incrível. Só de ver os olhos e o sorriso dele, me bastou.
BBC Brasil - Você sofreu algum tipo de preconceito?
Letícia - Nenhum, foi mais fácil do que eu esperava. Na Líbia por exemplo, eu não podia tocar homens, então, tinha de trabalhar junto com um fisioterapeuta homem.
BBC Brasil - Como o brasileiro é visto lá na Síria?
Letícia - É sempre muito bem-vindo. O brasileiro se adapta melhor e tem mais imaginação. É preciso saber lidar com situações assim, adversas - e o brasileiro faz isso bem.
BBC Brasil - Como se preparar para uma missão dessas?
Letícia - Meses depois desses anos, ainda me choco, vejo coisas de cair o queixo. Mas simplesmente não tem como se preparar para isso.
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